Nós iniciamos cada ano com o Dia Mundial da Paz, instituído pelo Beato Papa Paulo VI no dia 8 de dezembro de 1967, com vistas a começar no primeiro dia de janeiro de 1968. É um dos frutos do Concílio Vaticano II.
A data é muito propícia, pois toca, a nosso ver, três pontos deveras especiais:
1) o início de um novo ano, no qual as pessoas costumam fazer votos de grandes realizações aos seus semelhantes. Ora, nada melhor do que desejar paz, que é a tranquilidade da ordem, no dizer de Santo Agostinho de Hipona (século V);
2) é o dia de Nossa Senhora, celebrada sob o título mais antigo que a Igreja lhe reconheceu: o de Mãe de Deus (Theotókos), definido já no ano de 431, no Concílio de Éfeso, e que a partir de 1917 passou a ser invocada pelo Papa Bento XV também como a Rainha da Paz, tendo em vista tantos problemas da humanidade, mas especialmente a primeira grande guerra de 1914 a 1918;
3) o Ano Novo é tempo de renascimento interior, pois no dia 25 de dezembro o Menino Deus, Príncipe da Paz, vem até nós e nos traz o desejo da reconciliação com Ele mesmo e com os irmãos e irmãs, de modo que importa para bem celebrarmos o Santo Natal e o Ano Bom a preparação interior, especialmente por meio da Confissão Sacramental em nossas paróquias.
Em vista de tudo isso, já há motivos suficientes para começarmos a pensar no Dia Mundial da Paz de 1º de janeiro de 2016 com o tema: “Vence a indiferença, conquista a Paz”. Afinal, como já se tem alertado em muitas outras vezes, nós vivemos a chamada “globalização da indiferença” e perdemos o nosso senso de pertença ao grande universo com os nossos irmãos e irmãs, os seres humanos, e, por conseguinte, com o restante de toda a obra criada, conforme relembra a Encíclica Laudato Si’. Parece que somos autossuficientes e não dependemos de ninguém, nem nos interessa a dor ou a alegria alheia. Voltamos ao velho chavão: “Cada um por si e Deus por todos”, esquecendo-nos de que, diariamente, rezamos (ou ao menos deveríamos rezar) a Oração do Senhor, na qual não dizemos “Pai meu”, mas, sim, “Pai Nosso”. Daí decorre que temos irmãos e irmãs a zelar e, ao contrário de Caim (cf. Gn 4,1-16), precisamos entender que somos responsáveis por eles em suas glórias e desventuras, dizendo “Não” ao individualismo.
Na primeira semana do próximo setembro, teremos entre nós o Cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, natural de Gana, na África, e atualmente presidente do Pontifício Conselho de Justiça e Paz no Vaticano. Ele foi convidado por nós e pela PUC do Rio de Janeiro para proferir conferências sobre a questão da justiça e da paz. Ele também tem uma importante atuação no documento do Papa sobre a ecologia, a Laudato Si’. Por isso, aproveitamos o tema do próximo Dia Mundial da Paz para motivar também a participação de nossos irmãos e irmãs nas conferências do início do próximo mês sobre esse assunto tão importante, com (um) uma autoridade que atua nessa área e é próximo ao Papa Francisco.
A agência do Vaticano nos fala sobre o anúncio do Dia Mundial da Paz 2016: “A paz deve ser conquistada: não é um bem que se obtém sem esforços, sem conversão, sem criatividade e sem dialética. Trata-se de sensibilizar e formar o sentido de responsabilidade em relação às graves questões que afligem a família humana, como o fundamentalismo e seus massacres, as perseguições por causa da fé e de pertença étnica, as violações da liberdade e dos direitos dos povos, o abuso e a escravidão das pessoas, a corrupção e o crime organizado, as guerras que causam o drama dos refugiados e dos emigrantes forçados”.
Mais: “A mensagem de 2016 pretende ser um ponto de partida para todas as pessoas de boa vontade, em particular àquelas que atuam na educação, na cultura e nos meios de comunicação, para que ajam, cada uma segundo suas próprias possibilidades e de acordo com as melhores aspirações, para construírem juntas um mundo mais consciente e misericordioso e, portanto, mais livre e mais justo”.
É certo que as nossas sociedades, tanto urbanas, sobretudo das metrópoles, e também as rurais, mudaram muito com a escalada da violência nos últimos tempos, de modo que já não há mais reciprocidade nas pessoas; elas falam com as outras, não raras vezes precavidas de poderem estar sendo vítimas de um golpe estelionatário ou mesmo de um “estudo” para serem futuramente assaltadas ou sequestradas. Nem os mais idosos escapam. Isso gera desconfiança, medo e a consequente falta de caridade. A cultura da cordialidade brasileira, conhecida até no Exterior, parece demasiadamente ameaçada, sem que haja uma resposta à altura.
Tudo isso sem falar nos conflitos de guerras espalhados pelo mundo, nos quais centenas de milhares de pessoas já perderam suas vidas, dentre elas famílias inteiras inocentes e alheias aos problemas causados por disputas de poder, sejam de que tipos forem, sempre tão contrárias à Paz que Cristo nos veio trazer. Vez ou outra são reacesos de problemas antigos ou alimentados novos, de modo que o próprio Papa Francisco chegou a falar que estamos no contexto de uma 3ª guerra mundial, tamanha a força da violência que testemunhamos nos nossos tempos. Tempos de grandes avanços científico-tecnológicos, mas ausentes, não poucas vezes, de humanidade, de caridade, de amor ao próximo, o que gera a frieza para com o semelhante e a indiferença para com o mal.
Também falta Paz aos setores mais frágeis da nossa sociedade em diversas partes do mundo, de modo que na recente Encíclica Laudato Si’ Francisco repete muitas vezes o dilema dos mais pobres. Ele o faz não apenas para relembrar chavões que possam inspirar a odiosa luta de classes, mas, sim, para sustentar a opção preferencial, porém não exclusiva nem excludente, para com aqueles que não têm voz e nem vez em um mundo marcado pela busca incessante do lucro e do poder. Aquele que nada produz é relegado à cultura do descarte.
Estão aqui, como sempre recorda o Santo Padre, as crianças indefesas no ventre materno, tidas por alguns como meros amontoados de células, mas não uma vida humana como todas as outras. Daí, a violência do aborto a ameaçá-las ainda antes de verem a luz do dia; os idosos sozinhos, que tanto fizeram pela humanidade, vivem quais prisioneiros de guerra em alguns países, com medo de irem ao médico para uma consulta de rotina, serem diagnosticados com problemas graves e sofrerem a eutanásia compulsória. Ou seja, não serve, mata. É a lógica da indiferença que foge da Paz e gera o medo. Outra classe atingida pela ausência de Paz é a dos adolescentes e jovens que, sem trabalhos ou estudos, ficam à margem de uma sociedade excludente, na qual parece haver uma seleção desumana com lugar apenas para os fortes ou preparados. Os demais podem cair em uma escravidão terrível de vícios e crimes que não se curam com prisões, mas, sim, com métodos educativos abrangentes, capazes de chegar a todos de verdade e sem omissões da sociedade em geral, especialmente do poder público, que se propõe a dar uma educação de qualidade ao nosso povo.
Outras duas formas de violência que não podem deixar de ser registradas em nossos dias são a perseguição sangrenta às minorias religiosas, especialmente aos cristãos em alguns países dominados por radicais de vários segmentos religiosos ou filosóficos, com destaques para a Índia, o Oriente Médio, a China ou certas regiões da África, onde também existem conflitos raciais há muito tempo, ou as perseguições mais veladas nos países ditos democráticos, mas que impedem o livre exercício da liberdade religiosa e de consciência. Até mesmo no Brasil, a objeção de consciência, entendida como um direito humano básico de se opor a tudo aquilo que contraria nossos princípios religiosos, filosóficos ou pacifistas, vem sendo ameaçada e pode mesmo ser supressa, caso as forças vivas da Nação não ergam suas vozes, dentro da lei e da ordem, mas com firmeza, contra essa forma de violência disfarçada, porém muito intolerante.
Diante desse quadro sombrio, contudo bastante incompleto, alguns seriam levados ao desespero. Afinal, que fazer? A primeira atitude do cristão é converter o próprio coração a fim de que o mundo à sua volta seja melhor, pois, ao contrário do que prega a sociedade individualista, nós somos, na humanidade, solidários uns para com os outros, de modo que o bem que fazemos ou deixamos de fazer repercute na vida dos nossos irmãos e irmãs de forma benéfica ou trágica. A segunda atitude é buscarmos nos aliar a grupos sérios, de caráter religioso ou não, que trabalham pela Paz e pelo bem do próximo, por meio da caridade especialmente. Seremos uma gotinha no oceano, mas ali faremos a diferença que só o nosso trabalho pode fazer: o pouco com Deus é tudo!
Nada disso, no entanto, se consegue sem a oração, alma da alma cristã, conforme se referem alguns autores entendidos no caminho da Espiritualidade. Daí refletirmos sobre tudo isso às vésperas das conferências do Cardeal Turkson aqui no Rio de Janeiro, neste ano em que a CNBB consagrou como o Ano da Paz.
Reflitamos, rezemos e ajamos, dentro de nossas possibilidades, para que a Paz realmente frutifique em nosso meio, começando em nossa casa, no trabalho, na escola, enfim, nos nossos ambientes cotidianos para daí se espalhar, positivamente, por toda a sociedade, com a graça de Deus e a intercessão de sua Mãe Maria Santíssima, a Rainha da Paz.
Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro (RJ)