A prática religiosa se defronta hoje com um grande obstáculo. Entre outros, refiro-me ao relativismo em matéria de Fé. A doutrina ensinada por Cristo e, em seu nome, pelo Magistério sob a guia do Espírito Santo é o alicerce da Igreja. Condicionar sua aceitação a interpretações subjetivas é inaceitável. Aí está o núcleo de grave problema que aflige a vida católica.
Desde o século passado, vem ocupando espaço na mentalidade reinante uma falsa concepção da verdade. A exaltação da liberdade sem limites tem levado indivíduos e grupos a equiparar os ensinamentos religiosos a doutrinas, deveres e disciplina díspares. Cada um escolhe a parcela que lhe apraz e, com uma consciência supostamente tranquila, declara ser católico, mesmo que o conteúdo de sua opção não coincida com a voz do Magistério da Igreja.
Esse procedimento penetrou na teologia, com sequelas negativas para os fiéis incautos. A aparência é agradável, faz supor harmonia quando, na realidade, é a destruição da pregação feita por Jesus Cristo. Não se confunde com o genuíno pluralismo, que respeita o essencial e discute o acidental, que não integra a autêntica doutrina ensinada pelo Magistério. O grave, inclusive no ambiente que se afirma católico, é uma tolerância inaceitável em matéria teológica, litúrgica e disciplinar. Isso contraria as diretrizes do Concílio Vaticano II, de documentos sinodais, das Congregações Romanas nas áreas de sua legítima competência, para citar textos mais recentes. Todas estas normas devem ser religiosamente acatadas pois, caso contrário, além da desobediência e confusão, há sério prejuízo para a Igreja do Senhor.
Essa situação já existia, sob formas diversas, nos tempos apostólicos, como se conclui da carta de São Paulo a Timóteo (2Tm 4,2): “Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina”. Sobre esta citação bíblica, o então Papa João Paulo II fez o seguinte comentário em sua Encíclica “Evangelium Vitae” (nº 82): “A exortação de Paulo seja também ouvida por todos os teólogos, pastores e quantos desempenham tarefas de ensino, catequese e formação de consciências: cientes do papel que lhes cabe, jamais assumam a grave responsabilidade de atraiçoar a verdade e a própria missão, expondo ideias pessoais contrárias ao Evangelho da Vida, que o Magistério fielmente propõe e interpreta. Quando anunciamos este Evangelho não devemos temer a oposição e a impopularidade”. Guardemos os dois conceitos fundamentais dessa citação: “não atraiçoar” e “ter coragem para enfrentar a impopularidade”.
Cabe-nos uma opção da maior importância, com repercussão em nossa vida, aqui e na eternidade: ou a fidelidade integral à Igreja de Cristo com todas as suas consequências, ou o relativismo teológico, tão em voga hoje, fruto de muitos fatores influentes em nossa cultura.
Um sistema político, por mais válido que seja, como a democracia, não pode ser padrão a ser seguido em toda matéria religiosa. Caso contrário, cairíamos no absurdo de a verdade ser resultado de uma votação. Assim, o ensinamento que tivesse mesmo um só voto a menos, de verdadeiro transformar-se-ia em erro, pelo princípio básico da maioria. A aceitação da disciplina não se assemelha à anuência ao programa de um partido político ao qual aderimos. Quando vemos a Liturgia ser manipulada a bel-prazer de um sacerdote ou equipe de liturgia diocesana ou paroquial, temos um exemplo de ditadura camuflada sob o belo rótulo de “louvar melhor ao Senhor”. E penso na severa determinação do Vaticano (“Sacrossanctum Concilium”, nº 22): “Ninguém mais, mesmo que seja sacerdote, ouse, por sua iniciativa, acrescentar, suprimir ou mudar seja o que for em matéria religiosa”.
O relativismo teológico se acentua quando se trata de alguns aspectos da Moral: aborto, anticoncepcionais, eutanásia, Eucaristia e recasados, engenharia genética, preservativos. Acrescente-se a importância da formação da consciência à luz de princípios objetivos e não segundo critérios subjetivos ou conveniências pessoais.
Temos à disposição guias autênticos. Refiro-me ao Catecismo da Igreja Católica e a tantos outros documentos, como as encíclicas “Evangelium Vitae”, “Veritatis Splendor”, “Familiaris Consortio”, como também a Carta Apostólica “Ordinatio Sacerdotalis” e a Carta da Congregação para a Doutrina da Fé “aos Bispos da Igreja Católica sobre a recepção da comunhão eucarística por parte de fiéis divorciados e recasados”, fáceis de serem encontrados nas livrarias e que são indicadores seguros.
Fundamental para que alguém possa afirmar ser um seguidor de Cristo é orientar sua vida segundo as diretrizes dadas pelo Senhor Jesus, através da Igreja que Ele fundou e confiou a Pedro. Por essas mesmas normas objetivas, cada um deve educar a consciência. O julgamento é correto e deve ser seguido se está de acordo com a razão e a lei divina. As dificuldades são esclarecidas pelo Magistério Eclesiástico, isto é, o ensino autêntico da Igreja. Um alerta deve ser dado. Como há correntes de pensamento que falsamente se dizem católicas, as orientações daí decorrentes, mesmo vindas de eclesiásticos, não justificam opções da própria consciência. Assim, um confessor que autorizasse a esterilização e o aborto ou ensinasse outros erros, assume a responsabilidade do mal que pratica. Faz o mesmo a pessoa que aceita essa distorção da doutrina. Neste caso, o pecado é de ambos.
Nós não criamos a verdade, mas a ela obedecemos.”Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decênios, quantas correntes ideológicas, quantas modas de pensamento. (…) Nós temos outra medida: o Filho de Deus, o verdadeiro Homem” (Homilia do então Cardeal Ratsinger, na abertura do Conclave, 18/04/2005). Somente a Fé nos faz compreender e aceitar as normas da Igreja, de modo particular quando se referem à nossa vida moral. Essa pode parecer impossível. Com a graça de Deus, não. Diz o Apóstolo: “Tudo posso naquele que me conforta” (Fl 4,13).
Dom Eugenio de Araujo Sales
Cardeal Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro