Nos dias de carnaval, um clima de euforia apodera-se da sociedade. No exercício de sua missão eminentemente religiosa, a Igreja deve fazer ouvir sua voz, relembrando os princípios cristãos que animam e dirigem uma festa saudável.
A mensagem evangélica não condena a alegria. Pelo contrário, ela pode ser – devidamente ordenada – expressão legítima do homem que encontra sua identidade profunda não apenas no trabalho, mas também do que nasce da sensibilidade, na emoção e no sadio prazer. Mais ainda, é assim que a pessoa atinge a sua dimensão espiritual, elevando-a acima do plano meramente animal, onde inexiste o sentimento e tão somente o instinto. O grande mestre Santo Tomás de Aquino, afirma que “o prazer que sentimos nos atos de diversão, ordena-se a uma certa recreação e ao descanso da alma” (“Suma Teológica”, II-II, q. 168, a. 2, ad 3).
Requer-se, no entanto, para alcançar esta meta, que a diversão tenha certas características. A primeira é que ela não nos afaste da finalidade última, Deus, que o antigo texto do catecismo expressava tão bem na fórmula: “criado para dar glória a Deus”. A recreação mantida neste nível se fundamenta nos valores da justiça, da fraternidade, do respeito de si e dos outros.
O segundo distintivo: o divertimento, o lazer – como o labor físico e mental – encaminham o indivíduo ao seu amadurecimento, a aperfeiçoar-se sempre mais como imagem do Criador e membro da família universal. Unido harmonicamente às ocupações, também o descanso deve nortear-se “para o bem da pessoa e da sociedade” (“Gaudium et Spes”, nº 67). Não pode ser, por conseguinte, uma atitude de fuga do real, de esquecimento puro e simples dos problemas. Conheciam muito bem os romanos a força alienante dos folguedos, quando proporcionavam à população faminta, ou por vezes revoltada e ameaçadora, os grandiosos espetáculos de circo, acompanhados de bastante pão: “panem et circenses”.
Ao perpassar as páginas da História, a decadência dos costumes possui traços semelhantes, nos diversos períodos da Humanidade. Sempre ocorrem nefastos efeitos em todas as crises morais, sejam quais forem as suas aparências.
Um terceiro elemento deve ainda ser considerado. Quando desvirtuada, a diversão pode provocar graves distúrbios, gerar males, principalmente ao deixá-la sob o domínio dos instintos. Explosões de erotismo, abuso do álcool, frenesi que chega ao paroxismo, eis algumas das características da violência incontida, que vem à tona quando a consciência responsável é sacrificada no altar do prazer e o sadio entretenimento se perverte.
O bem da sociedade pede hoje quem fale com coragem, mesmo sem alcançar resultados visíveis, sobre as verdadeiras e reais proporções de alegria e folguedos.
Qual o fator predominante? Nosso ambiente está por demais marcado por gestos de brutalidade que nascem das paixões desenfreadas; cenas degradantes no esporte, nas competições que deveriam levar à solidariedade. Estes dias de carnaval costumam arrastar à exacerbação dos desregramentos morais, crimes e acidentes, consequência de excessos alcoólicos e drogas que, inclusive, criam uma imagem desfavorável do Brasil no exterior. Grupos infringem a lei de Deus e dos homens, exorbitando da liberdade e essa libertinagem mancha não apenas seus autores, mas a Nação brasileira.
Uma educação para o divertimento começa na infância, no seio da própria família: prolonga-se no período escolar e continua ao longo de toda a existência. Nela se apresentam os grandes valores do homem, um ideal aberto não somente à própria realização pessoal, mas também à sociedade e ao bem comum. Incluem-se as inúmeras iniciativas que visem a esta integração do ócio com atividades repousantes, a prática de esportes e trabalhos também coletivos. As colônias de férias, quando retamente orientadas, podem contribuir muito para a criação de uma nova mentalidade. Como ainda movimentos conjuntos promovidos pelas comunidades eclesiais de base ou as associações de bairro. Nesses programas estará sempre presente a marca essencial, que a tudo deve presidir como fundamento, inspiração e força motriz: uma autêntica vivência cristã que valoriza o corpo e suas expressões, dignificando-o e elevando-o à grandeza de “imagem e semelhança de Deus”.
Nestes dias de carnaval, muitos se afastam dos festejos ruidosos. São centenas de milhares que deixam o Rio de Janeiro – poderia mesmo dizer que a maioria dos cariocas passa um carnaval muito tranquilo. Alguns, apenas porque não gostam de tais manifestações; outros, ainda, para não se envolverem em problemas. Mas, há quem busque viver uma outra dimensão do seu lazer, aproveitando os dias livres para um encontro mais aprofundado e intenso com o Senhor. São os que fazem seu retiro espiritual. Não se trata de uma fuga, mas de um uso legítimo de lazer. Abrindo-se para a transcendência, dão testemunho da espiritualidade que deve caracterizar o ser humano e que indica o fim último de sua existência. Tornam-se, ainda, sinais de Deus, como que a proclamar que a alegria não pode esgotar-se nas celebrações malsãs, pecaminosas ou simplesmente vazias de uma festa temporal, já que temos outro destino e uma fonte de júbilo que não passa nem deve acabar. Todos eles completam, desta forma, o quadro geral de nossa metrópole. Embora nem sempre sejam notícia, ali estão pelo gosto de viver e não como desertores da vida.
Não identifiquemos o carioca com o carnaval, nem o Rio de Janeiro com as imagens que costumam ser mostradas pela televisão ou estampadas em revistas e jornais. Por trás dessa triste e falsa aparência há uma Cidade digna. Por mais que seja dilapidada, em seus valores morais e materiais, ela sobreviverá.
Dom Eugenio Sales
Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro