Entre as profundas modificações observadas em nossa época, está o exercício da autoridade. Algumas, positivas, outras, negativas.
A apreciação verdadeira que leve à retificação de rumos, implica uma visão clara de sua origem e natureza, segundo o conceito cristão. A expressão latina “auctoritas” significa a respeitabilidade própria de quem é autor de algo, que protege, dá ou aumenta a vida. Quando pessoal (não oriunda de uma instituição), baseia-se mais em qualidades morais: a experiência, sabedoria, inteligência, capacidade prática, santidade. A oficial está vinculada a um ofício, fundamentado, primordialmente, na missão recebida através de um múnus.
Toda a sociedade civil requer alguém que desempenhe essa tarefa. A própria natureza humana, para sua plena realização, necessita ser ajudada pela comunidade. Deve haver alguém que preserve o bem individual e que seja também o guardião da coletividade, que é garantia indispensável a cada um de seus componentes. A dignidade do indivíduo é critério na busca da justa proporção entre o particular e o público. Para isso, impõe-se uma presença que exija a renúncia de certos valores de um lado e de outro, resguardando o indispensável equilíbrio.
O poder civil não se origina de um mero contrato. Nem vem simplesmente do povo. A fonte última não está no Estado, mas em Deus.
Dois princípios são essenciais. O Senhor criou o homem para que se realize plenamente. Entretanto, o direito do próximo é seu limite. O segundo é o consenso popular, cujas formas concretas variam conforme a sabedoria histórica e a cultura de cada época. Elas geram uma forma visível de exercer, no tempo, o que tem sua origem divina.
No Antigo Testamento, temos uma teocracia que reveste o governo civil de uma roupagem religiosa. No Novo Testamento, a independência do Estado é reconhecida, reverenciada e também criticada em seus excessos. Eis alguns textos: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,17-21). Nos Atos dos Apóstolos (4,19ss) a autoridade, mesmo político-religiosa, mas sob vestes teocráticas, tem limite na dignidade do homem imortal e no mandato absoluto de se anunciar o perdão da Cruz e a Ressurreição. Na Epístola aos Romanos (13,1-7), 1Coríntios (6,1-4), 1Pedro (2,3-17), é clara a subordinação desse poder ao dever de consciência. São Paulo lembra, ainda, em 1Timóteo (2,1ss), a obrigação de rezar pelos que nos governam. E o Catecismo da Igreja Católica assim nos fala: “A sociedade humana não estará bem constituída nem será fecunda, se a ela não presidir uma autoridade legítima que salvaguarde as instituições e dedique o necessário trabalho e esforço ao bem comum. Por conseguinte, toda a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe. Esta tem o seu fundamento na natureza humana. Ela é necessária para a unidade da comunidade civil. O seu papel consiste em assegurar, quanto possível, o bem comum da sociedade”. E ainda: “A autoridade exigida pela ordem moral emana de Deus (…). Quem resiste, pois, à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus” (nn. 1897-1899).
Quando se trata da sociedade religiosa, há também outra dimensão. Puebla (nº 257) recorda: “A Igreja, enquanto Povo de Deus, reconhece apenas uma autoridade: (…) Por isso, a participação de sua autoridade, aos Pastores ao longo da História, nasce e parte desta mesma realidade”.
Nos últimos tempos, constata-se uma mudança na maneira de exercê-la, acentuando seu caráter de serviço. Fica, entretanto, inalterada sua característica especial: o mandato explícito de Cristo. Ele constitui doutores que falam em seu nome: ”Quem vos ouve é a mim que ouve” (Lc 10,16). Estabeleceu o poder sacerdotal e fez dos Bispos os que autenticam os carismas.
O cristão, por sua Fé, reconhece a autoridade civil e religiosa. A doutrina que professa exige o respeito, independente das qualidades ou defeitos dos que se encontram revestidos desse mandato que vem de Deus. Entretanto, em nossos dias, há uma verdadeira destruição desses elementares ensinamentos do Salvador.
Assistimos ao fracasso de uma educação anti-autoridade, apregoada nos últimos tempos. Uma concepção pedagógica, decorrente de uma psicologia (Freud) que pretende libertar da opressão, chegou a melancólicos resultados. Pedagogos começam a se levantar contra tão funesta e generalizada aberração de um educador desprovido do mando legítimo. Guardadas as devidas proporções, podemos dizer o mesmo da sociedade. A anarquia, a contestação, a desordem com suas consequências aí estão.
O consumismo em seu sentido mais amplo repele qualquer renúncia. Então a liberdade, importante e indispensável fator de progresso e de formação pessoal e social, se converte em libertinagem. Como um círculo vicioso, busca-se a compensação no sexo, no tóxico, no terrorismo. Sem horizontes, que somente um ideal nos pode dar, corrompe-se o cerne de uma integração benéfica entre o poder e o respeito à autonomia individual, Caminha-se então para o despotismo, a ditadura ou os regimes anárquicos.
Para restabelecer uma nova vida, fundamentada na lei natural e cristã, da verdadeira autoridade, cabe à Família um papel da maior relevância: ela deve restabelecer esses princípios no seu interior para o bem estar da sociedade civil e religiosa.
Dom Eugenio de Araujo Sales
Cardeal Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro