O Papa Francisco, na tarde desta quinta-feira, 1º de setembro, presidiu na Basílica de São Pedro às Solenes Vésperas pelo Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação. A data foi instituída pelo Santo Padre em 2015, unindo assim a Igreja Católica a uma iniciativa que já era realizada pelas Igrejas Ortodoxas.
“Ó homem, por que tens de ti um conceito tão baixo, quando és tão precioso para Deus?” Com esta frase – extraída dos Discursos de São Pedro Crisólogo, século V – o Pregador da Casa Pontifícia, Frei Raniero Cantalamessa, iniciou sua longa e articulada reflexão, intitulada “Rezar pela Criação ou rezar com a Criação?”
Desde o século V – explicou Frei Raniero – “mudou o motivo pelo qual o homem despreza a si mesmo, mas não mudou o fato”. “Hoje o motivo do desprezo é que o homem é menos que nada na imensidão ilimitada do universo”.
O homem diante do universo
Para contrastar a afirmação de muitos cientistas ateus, que defendem a total marginalidade e insignificância do homem no universo, Frei Raniero propõe um enunciado de Dionísio, o Aeropagita, do século VI que diz, que “não se deve refutar as opiniões dos outros, nem se deve escrever contra uma opinião ou uma religião que não parece boa. Se deve escrever somente a favor da verdade e não contra os outros”. “Não se deve absolutizar estes princípios – reiterou – porque às vezes pode ser necessário refutar doutrinas falsas e perigosas; mas é certo que a exposição positiva da verdade é mais eficaz do que não a rejeição do erro contrário”.
Soberania do homem
Referindo-se novamente ao discurso de Crisólogo, o Pregador da Casa Pontifícia diz que o autor reafirma “a ideia bíblica da soberania do homem sobre o cosmos”, visão completada por São Paulo que indica o lugar que Cristo ocupa nele:
“Estamos diante de um “ecologismo humano” ou “humanístico”: um ecologismo, isto é, que não é um fim por si só, mas em função do homem, não só, naturalmente, do homem de hoje, mas também daquele futuro”.
Criado à imagem e semelhança de Deus
O pensamento cristão nunca deixou de interrogar-se sobre o porque desta transcendência do homem em relação ao resto da criação, encontrando sempre a resposta na afirmação bíblica de que “o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus”.
O renovado diálogo com o pensamento ortodoxo, tornou possível à teologia dar uma explicação realmente satisfatória para a questão, que “é saber em que consiste ser a imagem de Deus”:
“Tudo se alicerça na revelação da Trindade operada por Cristo. O homem é criado à imagem de Deus, no sentido que participa da íntima essência de Deus, que é de ser em relação de amor entre Pai, Filho e Espírito Santo”. “Eles não têm uma relação entre si, mas são a relação”, como define Santo Agostinho.
Liberdade do homem
Somente o homem – enquanto pessoa capaz de relações livres e conscientes – participa desta dimensão pessoal e relacional de Deus. “Sendo a Trindade uma comunhão de amor, criou o homem como um “ser em relação”. É neste sentido que o homem é “a imagem de Deus””.
O abismo entre Deus e a criatura humana “é preenchido pela graça”, tornando-se “menos profundo do que aquele existente entre o homem e o resto da criação”. Com a redenção operada por Cristo, o homem tornou-se “partícipe da natureza divina”.
Triunfalismo racial?
Esta visão poderia levantar objeções, não somente por parte dos não-crentes: “Tudo isto não é triunfalismo racial?”, levando a um domínio indiscriminado do homem sobre o resto da criação, com as consequências facilmente imagináveis e, infelizmente já em curso?:
“A resposta é: não, se o homem se comporta realmente como imagem de Deus. Se a pessoa humana é imagem de Deus enquanto é “um ser em comunhão”, isto quer dizer que menos se é egoísta, fechados em si mesmos e esquecidos dos outros, mais se é pessoa realmente humana”.
Neste sentido, “a soberania do homem sobre o cosmos não é um triunfalismo de espécie, mas assunção de responsabilidade pelos mais fracos, os pobres, os indefesos. O único título que eles têm para serem respeitados, na ausência de outros privilégios e recursos, é o de ser pessoa humana”.
Deus que ouve o grito dos pobres
“O Deus da Bíblia – mas também de outras religiões – é um Deus “que ouve o grito dos pobres”, que “tem piedade dos fracos e do pobre”, que “defende a causa dos miseráveis”, que “faz justiça aos opressores”, que “nada despreza daquilo que criou”.
A encarnação do Verbo trouxe uma razão a mais para “para assumir o cuidado dos fracos e do pobre, independente da raça ou da religião a que pertença. Com a encarnação, o homem escolheu ser “não rico e poderoso, mas pobre, fraco e indefeso”.
São Francisco
Este foi o passo em frente que Francisco de Assis permitiu que a teologia desse, explicou o Pregador da Casa Pontifícia, “superando o dogma necessário para contrastar a heresia” da época, e que não podia permanecer nisto.
O que comoveu Francisco até as lágrimas no Natal, foi a humildade a pobreza do Filho de Deus:
“Nele, o amor pela pobreza e o amor pela criação andavam lado a lado e tinham uma raiz comum na sua radical renúncia em querer possuir. Francisco pertence a esta categoria de pessoa do qual São Paulo nos diz que “não tendo nada, possuíam tudo””.
Papa Francisco
O Papa Francisco – afirma o Frei Raniero – acolhe esta mensagem quando faz “da íntima relação entre os pobres e a fragilidade do planeta” um das “pedras angulares” da sua Encíclica sobre o ambiente”:
“O que de fato produz, ao mesmo tempo, os piores danos ao ambiente e a miséria de imensas massas humanas, se não o insaciável desejo de alguns de fazer aumentar sem medidas as próprias posses e lucros? À terra se deve aplicar aquilo que os antigos diziam da vida: a ninguém é dada em propriedade, a todos em uso”.
Terremoto
A verdade de que não somos os donos da terra nos é recordada por acontecimentos como “o terrível terremoto da semana passada” e que nos leva a perguntar: “Onde estava Deus?”, questionamento para o qual não temos uma pronta resposta:
“Algo, porém, a fé nos permite dizer. Deus não projetou a criação como se fosse uma máquina ou um computador, onde tudo é programado desde o início em cada detalhe, salvo a operar periodicamente atualizações. Por analogia com o homem, podemos falar de um tipo de “liberdade” que Deus deu à matéria de desenvolver-se segundo leis próprias. Neste sentido ( mas somente neste), podemos até mesmo compartilhar o ponto de vista dos cientistas não-crentes que falam de “acaso e necessidade”. Na evolução tudo ocorre “por acaso”, mas o próprio acaso é previsto pelo Criador e não é “por acaso””.
Assim, à pergunta “Onde estava Deus na noite de 23 de agosto, o fiel não hesita em responder com toda a humildade: “Ele estava ali sofrendo com as suas criatura, acolhendo na sua paz as vítimas que batiam á porta de seu Paraíso”.
Ecologia sem doxologia
O Frei capuchinho recorda que existem muitas tarefas do homem em relação à criação, “algumas mais urgentes que outras, como a água, o ar, o clima, a energia, a defesa das espécies em risco. Disto se fala em todos os ambientes e encontros que se ocupam de ecologia. Mas faz uma ressalva:
“Existe porém, um dever pela criação do qual não se pode falar se não em um encontro entre fieis e é justamente por isto que foi colocado ao centro deste encontro de oração. Tal dever é a doxologia, a glorificação de Deus pela criação. Uma ecologia sem doxologia torna o universo opaco, como um imenso mapa-múndi de vidro, privado da luz que deveria iluminá-lo por dentro”.
Glorificação de Deus
A tarefa primordial das criaturas em relação à criação é de emprestar a ela a sua voz. Foram necessários milhares de anos para que o universo chegasse “à luz da consciência”, alcançada quando apareceu aquela que Teilhard de Chardin chama de “fenômeno humano”. “Mas agora que o universo chegou à sua linha de chegada, exige que o homem cumpra o seu dever, que assuma, por assim dizer, a direção do coro e entoe em nome de toda a criação: “Glória a Deus no alto dos céus!””.
“Nós, crentes, devemos ser a voz não somente das criaturas inanimadas, mas também dos nossos irmãos que não têm a graça da fé. Não esqueçamos, em particular, de glorificar a Deus pelas brilhantes realizações da técnica. São obras do homem, é verdade, mas o homem, de quem é obra? Quem o fez?”.
A glorificação – sublinha Frei Raniero – não serve naturalmente a Deus, mas a nós:
“Com ela, se redime a criação da senilidade e da vaidade, isto é, do não-senso, em que a arrastou o pecado dos homens e a arrasta hoje a incredulidade do mundo”.
Rezar “com” a criação
São Francisco de Assis – conclui o Pregador da Casa Pontifícia – tem algo a dizer ainda hoje a propósito do ecologismo:
“Ele não reza “pela” criação, pelo seu cuidado (no tempo dele não havia ainda necessidade), reza “com a criação”, ou “pela causa da criação”, ou ainda “por motivo da criação”. São todas nuances presentes na preposição “pelo” por ele usada: “Laudato Si, meu Senhor, pelo irmão sol, pela irmã lua, pela irmã mãe terra”. O seu canto é uma doxologia e um hino de ação de graças. Mas precisamente disto deriva o respeito extraordinário por cada criatura pelo qual queria que até às ervas selvagens fosse deixado um espaço para crescer”.
Fonte: Rádio Vaticano