Em seu primeiro ano como líder da Igreja Católica, Jorge Mano Bergoglio fala do simbolismo do dia 25 de dezembro e sobre as reformas no Vaticano
*Andrea TornielIi, do Vaticano
Para mim, Natal é esperança e ternura.” Francisco fala sobre seu primeiro Natal como papa.
Estamos na Casa Santa Marta, no Vaticano, às 12h50 de uma terça-feira, em dezembro. O papa nos recebe numa sala, próxima ao salão de jantar, por uma hora e meia. Por duas vezes, durante a entrevista, o olhar sereno que o mundo inteiro se acostumou a ver no rosto de Francisco desaparece: quando fala sobre o sofrimento de crianças inocentes e sobre a fome no mundo. O papa discorre sobre a convivência com outras correntes cristãs. Toca no assunto da família, a ser abordado no próximo Sínodo, e responde àqueles que o chamaram de marxista, por criticar o capitalismo na Exortação Apostólica.
O que o Natal significa para o senhor?
Papa Francisco – o encontro com Jesus. Deus sempre procurou seu povo, tomou conta e prometeu estar sempre perto. O livro do Deuteronômio diz que Deus anda conosco. Ele nos pega pela mão como um pai faz com seu filho. Ê uma coisa bonita. Natal é o encontro de Deus com seu povo. Ëtambém uma consolação. O mistério da consolação. Muitas vezes, depois da missa da meia-noite, passei uma hora ou mais sozinho na capela, antes de celebrar a missa da aurora. Experimentei um sentimento profundo de consolação e paz. Me lembro de uma noite de oração após uma missa em Roma. Acho que foi no Natal de 1974. Para mim, o Natal sempre teve a ver com isso: contemplar a visita de Deus a seu povo.
O que o Natal significa para as pessoas?
Papa Francisco – Significa ternura e esperança. Quando Deus nos encontra, nos diz duas coisas. A primeira: tenha esperança. Deus sempre abre portas, Ele nunca as fecha. Ele é o pai que abre portas para nós. A segunda: não tenha medo da ternura. Quando cristãos se esquecem da esperança e da ternura, a Igreja se torna fria, perde seu senso de direção e fica presa a ideologias e atitudes mundanas, enquanto a simplicidade de Deus lhes diz: “Sigam em frente, sou o pai que dá carinho a vocês”. Receio quando os cristãos perdem a esperança e a habilidade de estender um carinho amoroso aos outros. Talvez por isso, ao olhar para o futuro, eu fale tanto sobre as crianças e os idosos, sobre os mais indefesos. Durante minha vida como sacerdote, indo às paróquias, sempre tentei transmitir essa ternura, particularmente às crianças e aos idosos. Isso me faz bem e me faz pensar na ternura que Deus tem conosco.
O Natal costuma ser mostrado como um conto de fadas açucarado, mas Deus nasceu num mundo repleto de sofrimento.
Papa Francisco – A mensagem anunciada a nós nos Evangelhos é uma mensagem de alegria. Os evangelistas descreveram para nós uma história de alegria. Eles não questionam a injustiça do mundo ou como Deus pode ter nascido num mundo assim. Tudo isso é fruto de nossas próprias contemplações: o pobre, a criança nascida em condições precárias. O Natal não é a condenação da injustiça social e da pobreza. Ë um anúncio de alegria. Tudo o mais são conclusões que tiramos. Algumas estão corretas, outras estão menos corretas, e outras ainda estão cercadas de ideologia. Natal é alegria, alegria religiosa. A alegria de Deus, uma alegria interna de luz e paz. Quando você está incapaz ou numa condição humana que não permite compreender essa alegria, então vive-se a festa com alegria mundana. Mas há uma diferença entre a felicidade profunda e a alegria mundana.
Este é seu primeiro Natal como papa, num mundo marcado por conflitos e guerras…
Papa Francisco – Deus nunca dá um presente a quem não écapaz de receber. Se Ele nos dá o presente do Natal, é porque todos temos capacidade e entendimento para receber. Todos nós, do mais sagrado dos santos ao maior dos pecadores. Do mais puro ao mais corrupto. Mesmo o corrupto tem essa capacidade: pobre dele, é provavelmente um tanto rude, mas também tem. O Natal, nesta época de conflitos, é um chamado do Deus que nos dá esse presente. Queremos receber Deus ou receber outros presentes? Num mundo ferido pela guerra, este Natal me faz pensar sobre a paciência de Deus. A Bíblia claramente mostra que a maior virtude de Deus é que Ele é amor. Ele espera por nós. Nunca Se cansa de esperar. Ele nos dá o presente e então espera por nós. Isso ocorre na vida de cada um e qualquer um. Há aqueles que ignoram. Mas Deus é paciente. A paz e a serenidade do Natal são um reflexo da paciência de Deus conosco.
O próximo mês de janeiro marca o 50º aniversário da visita histórica do papa Paulo V (1897-1 978) à Terra Santa, em Israel. O senhor pretende repetir a visita?
Papa Francisco – O Natal sempre nos faz pensar em Belém, e Belém é o ponto exato, na Terra Santa, onde Jesus viveu. Na noite de Natal, penso sobretudo nos cristãos que vivem lá, naqueles que estão em dificuldade, naqueles que tiveram de deixar sua terra por vários problemas. Mas Belém ainda é Belém. Deus chegou num momento específico, a um lugar específico. Lá é onde a ternura e a graça de Deus apareceram. Não podemos pensar no Natal sem pensar na Terra Santa. Cinquenta anos atrás, o papa Paulo VI teve a coragem de se expor e ir lá, e isso marcou o início da era das jornadas papais. Também gostaria de ir lá, para encontrar meu irmão Bartolomeu, o patriarca ortodoxo de Constantinopla, e comemorar este 500 aniversário com ele, renovando aquela comunhão formada por Paulo VI e Atenágoras em Jerusalém, em 1964. Estamos nos preparando para isso.
O senhor se encontrou com crianças seriamente doentes, em mais de uma ocasião. O que o senhor tem a dizer sobre o sofrimento desses inocentes?
Papa Francisco – Um homem que tem sido um mentor de vida para mim é o escritor Fiódor Dostoiévski. Sua explícita e implícita pergunta sempre ronda meu coração: “Por que as crianças sofrem?”. Não há explicação. Essa imagem vem à mente: num ponto específico de sua vida, uma criança “desperta’ não entende muito, se sente ameaçada e começa a fazer perguntas a seus pais. Essa é a “idade dos porquês”. Quando a criança pergunta, nem espera ouvir a resposta inteira. Já começa~à bombardear com mais e mais perguntas. O que elas procuram, mais do que explicação, é o olhar tranquilizador de seus pais. Quando passo por uma criança que está sofrendo, a única oração que me ocorre éa oração do “por quê”. Por que, Deus? Ele não me explica, mas posso sentir Seu olhar para mim. Então, posso dizer: o Senhor sabe o motivo, eu não. O Senhor não me contará, mas está olhando para mim, e eu creio no Senhor. Deus, eu creio em Seu olhar.
Algumas das passagens do Evangelli Gaudium, sua primeira Exortação Apostólica, atraíram crfticas de ultraconservadores. Como o senhor se sente ao ser chamado de “marxista”?
Papa Francisco – O marxismo está errado. Mas conheci marxistas que eram boas pessoas, então não me sinto ofendido.
A parte mais chocante da Exortação é aquela que falado uma economia que “mata”…
Papa Francisco – Não há nada na Exortação que não possa ser encontrado na doutrina social da Igreja. Não falei de um ponto de vista técnico. Apenas tentei retratar a situação atual. O único termo técnico que usei foi a respeito da teoria do “trickle-down” (algo como fazer o bolo crescer para depois dividir). Ele diz que o crescimento econômico, encorajado por um mercado livre, levará inevitavelmente a mais justiça e inclusão social. A promessa era que, quando o copo estivesse cheio, ele transbordaria, beneficiando os pobres. O que acontece, no entanto, é diferente. Quando o copo se torna cheio, ele magicamente cresce, sem nada escorrer para os pobres. Foi a única referência que fiz a uma teoria específica. Não estava, repito, falando de um ponto de vista técnico, e sim conforme a doutrina social da Igreja. Isso não significa ser marxista.
O senhor anunciou uma “conversão do papado”. Seus encontros com pastores ortodoxos permitem vislumbrar como?
Papa Francisco – João Paulo 11(1920-2005) falou ainda mais explicitamente sobre uma. forma de exercer o papado aberta a um novo momento. Não apenas do ponto de vista das relações ecumênicas, mas também na relação com a Cúria e com as igrejas locais. Nesses nove meses de papado, recebi visitas de muitos irmãos ortodoxos. É doloroso não podermos celebrar a Eucaristia juntos, mas há amizade. Creio que o caminho é este: amizade, trabalho conjunto e preces pela união. Abençoamos uns aos outros.
A unidade cristã é uma prioridade?
Papa Francisco – Sim, para mim o ecumenismo é uma prioridade. Hoje, há ecumenismo de sangue. Em alguns países, cristãos são mortos por usar uma cruz ou ter uma Bíblia. Antes de matar, não perguntam se você é anglicano, luterano, católico ou ortodoxo. Para os que matam, todos somos cristãos. Somos unidos pelo sangue, mesmo se não resolvemos dar os passos nessa direção, ou mesmo se o momento certo ainda não chegou. Unidade é uma dádiva pela qual temos de pedir.
Na Exortação Apostólica, o senhor pediu por escolhas pastorais prudentes e corajosas nos sacramentos. A que o senhor se refere?
Papa Francisco – Não falei sobre a prudência como uma postura que paralisa, mas como a virtude de um líder. Prudência é a virtude de um governo, assim como a coragem. Falei sobre batismo e comunhão como o alimento espiritual que nos ajuda a ir em frente. Deve ser considerado um remédio, não um prêmio. Alguns imediatamente pensaram nos sacramentos para divorciados em segunda união, mas não me referi a nenhum caso específico. Apenas quis destacar um princípio. Temos de facilitar a fé das pessoas, em vez de controlar. No ano passado, condenei a atitude de alguns sacerdotes que não batizaram os filhos de mães solteiras. Essa é uma mentalidade doente.
E sobre divorciados em segunda união?
Papa Francisco – Excluir da comunhão divorciados que contraem um segundo matrimônio não é uma sanção. É importante lembrar isso. Mas não falei sobre isso na Exortação.
O assunto será discutido no Sínodo dos Bispos?
Papa Francisco – Discutiremos casamento nas reuniões do consistório em fevereiro. Abordaremos o assunto no Sínodo Extraordinário em outubro e novamente no Sínodo Ordinário do ano seguinte. Muitas coisas serão analisadas mais profundamente nessas discussões.
Como está o trabalho de seus oito conselheiros para reformar a Cúria?
Papa Francisco – Há muito trabalho pela frente. Quem tinha ideias e sugestões se manifestou. O cardeal Giuseppe Bertello (presidente do governo da Cidade do Vaticano) colheu as opiniões de todos os dicastérios do Vaticano (departamentos que compõem a Cúria Romana). Recebemos sugestões de todos os bispos do mundo. No último encontro, os oito cardeais me disseram que chegou a hora das propostas concretas. Em fevereiro, apresentarão sugestões a mim. Estou sempre nessas reuniões, menos nas manhãs de quarta-feira, quando tenho audiência. Mas não falo, apenas escuto, e isso me faz bem. Alguns meses atrás, um cardeal idoso me disse: “O senhor começou a reformar a Cúria com suas missas cotidianas na Casa de Santa Marta”. Isso me fez pensar: reformas sempre começam com iniciativas espirituais e pastorais, antes das mudanças estruturais.
Teremos cardeais mulheres no futuro?
Papa Francisco – Não sei de onde essa ideia se espalhou. Mulheres na Igreja devem ser valorizadas, não “clericalizadas”. Quem pensa em mulheres cardeais sofre de clericalismo.
Como está o saneamento do Banco do Vaticano?
Papa Francisco – As comissões estão progredindo bem. O Moneyval (comitê europeu contra lavagem de dinheiro) produziu um relatório favorável, estamos no caminho certo. Sobre o futuro do Banco, veremos. O objetivo do “banco central” do Vaticano deveria ser um: a administração do patrimônio da Santa Sé. O Banco do Vaticano foi criado para nos ajudar com questões de religião, missões e atender igrejas pobres. Então se tornou isso que é hoje.
O senhor poderia imaginar, há um ano, que celebraria o Natal de 2013 no trono de São Pedro?
Papa Francisco – De jeito nenhum.
*Entrevista concedida a Andrea Tornielli (colunista do Vatican Insider publicação italiana especializada na Igreja Católica), do Vaticano e publicada pela Revista Época de 23/12/2013