O Santo Padre Bento XVI com frequência fala sobre a importância da Igreja e de sua missão nos dias atuais. O objetivo da sua missão, afirma o Papa, “é iluminar com a luz do Evangelho todos os povos em seu caminhar na história rumo a Deus, pois N’ele encontramos a sua plena realização” (Mensagem para o Dia Mundial das Missões, 2009).
Esta missão, recebida de Cristo, pela Igreja abrange o homem todo, não apenas sua alma. A razão é simples. Como formamos um todo, há uma profunda interligação entre os elementos constitutivos do ser humano. Ao tratar de assuntos não religiosos, a Igreja deve fazê-lo exclusivamente como decorrência da Fé e excluídos influxos político-partidários ou ideológicos. Frente aos problemas da sociedade civil, surgem acusações de intromissões descabidas.
A Igreja, na busca do bem comum e do bem das almas, atua em nome de Cristo neste terreno. Uma ação pastoral é válida quando procura, por todos os meios honestos, a inclusão de princípios que assegurem o pleno desenvolvimento religioso e suas consequências no tempo e na eternidade. Em uma democracia, os cidadãos devem garantir a presença das exigências cristãs em matéria de educação, trabalho, conceito de propriedade, respeito à vida, fundamentos da família e assim por diante. Fazê-lo, é lícito. O critério para averiguação do caminho correto é examinar se o procedimento se refere ao plano eclesial ou avança em área privativa da competência das autoridades civis.
O mesmo se pode dizer, por exemplo, da reforma agrária. Há dois modos de abordar a questão: um é o político, modo esse reservado ao Estado; outro, enquanto envolve aspecto moral, a natureza social conferida por Deus aos bens criados. Neste caso, merece a devida atenção da Igreja.
Acusar toda e qualquer interferência de eclesiásticos nessa matéria como indébita, é uma injustiça. Também grave erro seria se ela ultrapassasse a esfera eclesial e invadisse atribuições próprias do Governo. O Concílio Vaticano II é explícito: “No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e autônomas” (“Gaudium et Spes”, nº 76). De grande sabedoria as diretrizes do Vaticano II quando insiste na importância “de uma concepção exata das relações entre a comunidade política e a Igreja e, ainda, que se distingam claramente as atividades dos fiéis (…) as quais desempenham em nome próprio guiados por sua consciência de cristãos, e aqueles que as exercitam em nome da Igreja e em união com os seus pastores”.
Diante dos desafios da história, a Igreja como um todo tem um papel específico a exercer, que não se identifica nem se substitui aos dos políticos, dos economistas, dos sociólogos, etc. É o papel de quem, levando a cabo sua tarefa especificamente religiosa, está dando uma colaboração própria para a solução dos problemas humanos. Nesse sentido, escreve o Santo Padre Bento XVI em sua Encíclica “Caritas in veritate”: “A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e não pretende de modo algum imiscuir-se na política dos Estados; mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do homem, da sua dignidade, da sua vocação” (nº 9).
Estas considerações visam fazer-nos refletir, antes de tomar um juízo sobre o comportamento das autoridades religiosas nos assuntos temporais. Um julgamento fruto de uma posição pessoal, à margem da moral cristã, dos postulados da Doutrina Social da Igreja, não é cristão. Uma crítica só será merecida se verídica e autêntica. Caso contrário, transforma-se em leviana. Por outro lado, o bom senso nos diz que diante de uma acusação é conveniente e útil, antes de rejeitá-la, verificar se é justa ou se nela há parcelas que correspondem à realidade. Em vez de uma reação intempestiva de quem quer que seja, o estudo objetivo nos dá serenidade.
Há possibilidade de erros de lado a lado. Eles, contudo, jamais devem-nos levar a qualquer enfraquecimento de nosso amor e devoção à obra de Cristo, pois “Ele é a cabeça do corpo, da Igreja” (Cl 1,18). Esta advertência é da maior relevância em momentos conturbados, quando surgem conflitos e dissensões.
Outro fator de notável influência na preservação da harmonia é a sincera procura da verdade nas notícias e declarações. Dada a importância dos meios de comunicação social, na formação da opinião pública, grande é sua responsabilidade na apresentação dos fatos. Às vezes, a perspectiva da Igreja é ignorada e deturpada. Ensinamentos e atividades, em diversos âmbitos, estão submetidos a análises preconcebidas, em que a interpretação subjetiva sacrifica ou anula a informação objetiva.
Não podemos deixar que a radicalização de atitudes prejudique a indispensável comunhão entre instituições e pessoas. Os cristãos, como são membros de duas sociedades (a civil e a Igreja), procurem harmonizá-las “lembrando-se que se devem guiar em todas as coisas temporais pela consciência cristã, já que nenhuma atividade humana, nem mesmo em assuntos temporais, se pode subtrair ao domínio de Deus” (“Lumen Gentium”, nº 36).
A coragem em servir à verdade, ensinada por Cristo, deve estar unida à humildade de reconhecer, caso existam, sombras na parte humana da obra do Senhor. A Graça divina nos fará ultrapassar os percalços decorrentes da fidelidade à missão recebida, assim como, caso necessário, rever procedimentos.
Dom Eugenio de Araujo Sales
Cardeal Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro